sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Mais um descaso


Gostei da idéia de repartir experiências. Faz bem e a gente desabafa, os problemas diminuem e o mundo continua girando.Já que já falei mal dos outros e já transformei o blog em divã, agora vai uma coisa séria.

No jornal, recentemente, vivemos de tragédias. Janeiro, entre Natal e Carnaval, é a época de entressafra de matéria. Nada nem ninguém funcionam. Tem gente de férias e tem gente que finge que está trabalhando, rezando pra esse restinho de ano passar logo.

Política é um marasmo. Todo mundo na praia, sujando os pés na areia e tomando banho de água salgada. Humpz! As tragédias tem salvado a pátria dos jornalistas. Urubus que somos, vivemos da tragédia alheia. Isso não é nada confortável, mas cada um com seu cada um.

A da semana foi a superlotação da Cadeia Feminina de Monte Mor, cidadezinha pacata na RMC (Região Metropolitana de Campinas), que vive basicamente da agricultura. Num cubículo de duas cela e um pátio, eram 120 mulheres amontoadas em um espaço reservado para 12. Pra quem é ruim de conta, imagine se agora, aí na sua cadeira, reservada confortávelmente pra você, estivessem sentadas mais 9 pessoas. Era isso lá em Monte Mor.

São presas. Meu pai diria que está ótimo desse jeito, que se elas não quisessem passar por aperto que não tivessem cometido crimes, etc. Concordo em partes, mas uma história entre tantas me fez pensar nessas pessoas com mais cuidado.

Uma das mulheres estava lá porque foi levar droga para o filho na cadeia. Pega, acabou enquadrada como traficante. Só fez isso porque o filho estava sendo ameaçado na cadeia e, pra mãe, todo filho é santo, mesmo que provem o contrário.

Essa é só uma das histórias e devem haver outras milhares. Mas o que vale lembrar é que são pessoas. Gente. Povo. Nenhuma cadeia precisa ser um hotel cinco estrelas. Mas qualquer pessoa tem direito ao mínimo de dignidade. Cadê o Estado?

E nem foi a questão social que me chamou a atenção nesse caso. Foi o descaso. Não o descaso do poder público com as presas, mas o descaso que vi no rosto de muita gente que ouvia a história. Jornalistas. Gente que se limitou a dizer: "tá lotado, hum, hum, mais um né". Pô, mais um! Não é só mais um! É gente! É um desrespeito! Tem mulheres inocentes ou quase inocentes, se é que isso existe, ali no meio.

Cadê a humanidade?
O gato comeu!
Cadê o gato?
Caiu no buraco!
O buraco é fundo!
Acabou-se o mundo!

Diante de tal "descaso" com o caso, com o caos, lembrei do poema "O Bicho", de Manoel Bandeira:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Aquelas mulheres foram tratadas como bichos. Viveram e conviveram com outros bichos: ratos, baratas, piolho. Se transformaram ali, nesta situação, em bichos mais ferozes. Sairão de lá, um dia, enfurecidas como bichos. E criarão seus filhos, bichos.

E daí fui dormir pensando: em que bicho nos transformamos?

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